Na atualidade, não precisamos fazer quase nada nós mesmos. Um aplicativo entrega comida pronta na sua porta, outro seleciona o date perfeito para você, outro resume o artigo científico que você queria ler. A popularização das ferramentas de inteligência artificial ressaltou um problema que já existia na nossa sociedade: o paradoxo da conveniência.
As novas tecnologias foram pensadas para facilitar nossa vida e otimizar o tempo para que, em teoria, pudéssemos passar mais tempo fazendo o que realmente importa: vivendo. Porém, estudos recentes mostram que o modelo de hiper conveniência que temos hoje, apesar de aparentar benéfico à curto prazo, na verdade, tem nos prejudicado.
O que é o Hiper Conveniência?
O paradoxo da conveniência ou a hiper conveniência é um fenômeno no qual a abundância de opções convenientes e fáceis, a princípio vista como positiva, acaba gerando efeitos negativos a longo prazo.
Na antiguidade, caçar era essencial para se alimentar. Por isso, sempre que havia comida, consumíamos o máximo de calorias possível para garantir uma reserva de energia. Da mesma forma, economizar esforço era fundamental para momentos realmente críticos, como longas peregrinações em busca de novos territórios.
Hoje, no entanto, a comida está disponível em abundância nos supermercados, inclusive opções de ultraprocessados que são ricas em calorias, mas pobres em nutrientes. Ao mesmo tempo, nosso gasto calórico diminuiu drasticamente, graças às novas tecnologias como meios de transporte, computadores e smartphones.
Mesmo assim, mantemos os mesmos hábitos ancestrais de priorizar o acúmulo de calorias e poupar energia. Resultado: a obesidade tem crescido como nunca antes. Infelizmente, aquele miojo delicioso pronto em 3 minutos pode até agradar na hora, mas seu consumo frequente impacta a saúde de forma silenciosa.
E isso não vale só para a alimentação: o paradoxo da conveniência afeta todas as áreas da vida. A escolha constante por atalhos está prejudicando nossa saúde, nosso intelecto e nossas comunidades.
Por que escolhemos sempre o caminho mais fácil?
A verdade é que optar pelo caminho mais rápido não é preguiça, mas sim instinto biológico. Historicamente, a modernização da sociedade aconteceu de forma extremamente rápida, enquanto a seleção natural, que determina nossos instintos biológicos, não acompanhou esse ritmo, dando origem ao chamado descompasso evolutivo, ou evolutionary mismatch.
Segundo a Biblioteca Americana de Medicina, o descompasso evolutivo acontece quando os alelos selecionados ao longo da evolução deixam de ser favoráveis no ambiente atual do indivíduo. Esse desencontro entre os instintos naturais e as novas exigências do mundo moderno resulta em comportamentos prejudiciais, disfarçados pelo sentimento de alívio que eles proporcionam.
Além da obesidade (exemplo mais debatido em um mundo obcecado por magreza), outras áreas também sofrem com esse descompasso. Uma pesquisa apresentada pela Biblioteca Americana de Medicina mostrou como a higienização industrial promovida por empresas alimentícias erradicou não apenas bactérias nocivas, mas também aquelas benéficas ao nosso organismo. Isso contribuiu para o aumento de doenças como esclerose múltipla e síndrome do intestino irritável.
Como afirma o psiquiatra e psicoterapeuta Alex Curmi, em artigo no The Guardian, a hiper conveniência é um tipo de pacto com o diabo. Ela é seduzente porque apela a nossos instintos, mas nos consome aos poucos.
A Hiper conveniência em todas as coisas
No dia a dia, estamos constantemente lidando com os efeitos silenciosos da hiper conveniência. Smartphones, que antes pareciam revolucionários por permitir comunicação a qualquer hora e lugar, hoje estão comprovadamente associados a um aumento em transtornos mentais como ansiedade, depressão e distúrbios alimentares.
Aplicativos de namoro, criados para conectar pessoas, a longo prazo reduzem nossas habilidades sociais e amplificam o medo de rejeição.
Mesmo no mundo fitness, alimentos com proteína adicionada e o uso de suplementos como Whey Protein, inicialmente promovidos como facilitadores de uma alimentação saudável, estão levando a uma deficiência de fibras.
Num nível mais amplo, a hiper conveniência também tem prejudicado nosso senso de comunidade. Quando optamos sempre pela opção mais fácil, minimizamos também as interações sociais em nossa própria comunidade. O café que é pedido para retirada por aplicativo elimina a conversa com o barista. O filme visto no streaming elimina a ida ao cinema, e com ela, toda a experiência compartilhada, do ingresso à sala de exibição
O resultado? Uma sociedade cada vez mais individualista e solitária. Existem tantas tecnologias que nos separam da sociedade que nos vemos sempre sozinhos.
Hiper conveniência e cultura da produtividade
Além dos instintos biológicos, um poderoso sistema socioeconômico impulsiona (e lucra com) a hiper conveniência. Avanços que deveriam nos dar mais tempo livre agora liberam nossa agenda para trabalhar mais.
A cultura da produtividade constantemente reforçada pelo mercado e pelas empresas, na qual o trabalho deve ser priorizado acima de tudo, se beneficia da hiper conveniência, minimizando as atividades que não são voltadas para “produzir.”
Neste contexto, as interações sociais tornam-se meras transações e não momentos de troca, compreensão e pertencimento. Quando o objetivo não é produzir, aquilo se torna inútil e deve ser “otimizado” o mais rápido possível.
Como sobreviver em um mundo hiper conveniente?
Se tudo é orquestrado para que você escolha atalhos, inclusive nossa biologia, o que podemos fazer para minimizar essas consequências? A resposta talvez não seja tão agradável, mas a melhor solução é optar pelo inconveniente quando possível.
Tudo na vida resume-se a equilíbrio. Equilibrar soluções modernas com doses saudáveis de desconforto. Do ponto de vista evolutivo, um certo nível de desconforto é essencial para o desenvolvimento humano. Nossos ancestrais não apenas economizavam energia, mas também corriam riscos para obter os melhores alimentos e encontrar os melhores lugares para viver.
Nas palavras de Alex Curmi,
“o florescimento humano e a felicidade não são apenas sobre subsistência, mas também dependem do crescimento, da resolução dinâmica de problemas e da solidariedade através das dificuldades.”